.jpg)
Ela canta, pobre ceifeira:
Ela canta, pobre ceifeira
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anónima viuvez,
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz à o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões p'ra cantar que a vida.
Ah! canta, canta sem razão!
O que em mim sente 'stá pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerta voz ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!
O poema é constituído por 6 quadras, com versos octossilabicos e rima cruzada, segundo o esquema rimático abab, havendo duas pequenas irregularidades: na primeira estrofe é toante a rima de ceifeira com cheia; na quinta estrofe, é forçada a rima do eu e céu. O poema também pode ser dividido em duas partes lógicas.
Na primeira parte, constituída pelas três primeiras estrofes, o sujeito poético descreve a ceifeira e sobretudo o seu canto, canto instintivamente alegre. O canto da ceifeira era “alegre” porque talvez ela se julgasse feliz, mas ela era “pobre” e a sua” voz cheia de anónima viuvez”. Por isso, “ouvi-la alegra e entristece”: alegra se atendermos às razões instintiva da ceifeira, entristece se a virmos na perspectiva total do sujetio poético.
Na segunda parte, o sujeito poético exprime a sua emoção perante a canção inconscientemente alegre da ceifeira. Podemos, ainda, subdividir esta segunda parte em dois momentos. Primeiramente, o sujeito poético lança um apelo à ceifeira para que continue a cantar a sua canção inconsciente, porque esta emoção o obriga a pensar, e a desejar ser ela, sem deixar de ser ele, e ter a sua “alegre inconsciência e a consciência disso”. Note-se que o sujeito poético aspira ao impossível, pois ter a consciência da inconsciência é deixar de ser inconsciente.
Sem comentários:
Enviar um comentário