sábado, 2 de junho de 2012

Memorial do Convento - José Saramago - Personagens

As personagens e respectivos projectos:

Tal como se apresentam várias linhas de acção narrativas complementares, também nelas desfilam personagens de diferente estatuto e relevo.
Na lógica de uma estrutura dual e de conflito de interesses, evidenciam-se dicotomicamente dois tipos de vivência: uma que se serve dos seus semelhantes para atingir determinados objectivos; outra que servirá de meio para alcançar esses mesmos fins. Tal facto está ao serviço da intenção do autor que pretende fazer a análise das condições sociais, morais e económicas da corte e do povo. Entre dominantes e dominados, há um desfilar de personagens a que se juntam outras duas cujos nomes estão carregados de simbologia: Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas.

Assim, no rol das personagens históricas, destaca-se a figura de D. João V, rei de Portugal, poderoso e rico, contudo insatisfeito por não ter descendente legítimo. Por este motivo, promete "levantar um convento em Mafra" se D. Maria Ana Josefa, sua mulher, lhe der um sucessor. A promessa cumpre-se com o nascimento da princesa Maria Bárbara.
A caracterização do rei é feita sempre através da descrição das suas acções e dos seus pensamentos; portanto, prioritariamente é a caracterização indirecta que evidencia traços pouco significantes do monarca. 

Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão apresenta-se como uma personagem sonhadora, que tem em mente a construção da passarola. Para tal, contribuiu a ajuda de Baltasar e Blimunda, assim como o apoio do rei D. João V. Trata-se de uma figura com fundamento histórico, na medida em que "reza a História" que Bartolomeu de Gusmão veio do Brasil para Portugal, em 1701, devido ao seu interesse por questões científicas.
O seu empenho em experiências aerostáticas estará na base da construção da passarola voadora. A perseguição pela Inquisição leva à sua fuga para Espanha (originando, no romance, a mutação do trabalho de construção da passarola, por Blimunda e Baltasar, para a construção do convento de Mafra).
De referencialidade histórica são também os nomes de Ludovice (arquitecto contratado pelo rei para a construção do Palácio e Convento de Mafra) e de Scarlatti (compositor e mestre-de-capela da princesa Maria Bárbara), ambos representantes do cosmopolitismo que marcava a corte portuguesa no século XVIII.

São, contudo, as personagens mais ficcionais aquelas a quem maior destaque confere o autor, por pertencerem àquele grupo de personagens desprivilegiadas.
A figura feminina, Blimunda, dotada de uma estranha capacidade de observar o interior do Homem, é capaz de ver os males, destruidores da vida, o que lhe vale para recolher as vontades necessárias ao voo da passarola do padre Bartolomeu de Gusmão. O seu misticismo, ligado aos seus poderes metafísicos, dá ao inventor Bartolomeu de Gusmão a energia que a Física ainda não havia inventado.
A caracterização desta personagem ora é feita pelo narrador ora por outras personagens. Baltasar, seu companheiro, fica perplexo quando visualiza os olhos de Blimunda, pois "olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento, ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, e às vezes tornam-se negros nocturnos ou brancos brilhantes como lascado carvão de pedra" (p. 55). Aos olhos do narrador, Blimunda, mulher de trabalho, apresenta uma "mão discreta e maltratada, com as unhas sujas de quem veio da horta e andou a sachar antes de apanhar as cerejas" (p. 169).
O nome de Blimunda, estranho e raro tal como a personagem que o veste, teria surgido ao autor talvez pela musicalidade que encerra ("aquele som desgarrador de violoncelo que habita o nome de Blimunda", José Saramago, JL, nº 410 de 15-5-90) ou pela magia das suas três sílabas, símbolo de perfeição e totalidade.
Esta figura representa a força que permite ao povo a sua sobrevivência, assim como contestar o poder e resistir.

Baltasar é uma das personagens da obra com maior densidade psicológica. Perdeu a mão esquerda na Guerra da Sucessão contra os Castelhanos, onde lutou como um verdadeiro guerreiro e homem de armas.
Com Blimunda forma um par amoroso, cuja união mágica, mas pagã, é confirmada pelo padre Bartolomeu de Gusmão. Ironicamente, as forças do poder e da repressão contribuem para o seu conhecimento, no momento em que Sebastiana Maria de Jesus (mãe de Blimunda) se encontrava sob a alçada de um auto-de-fé.
Baltasar partilha também do sonho do padre em construir a passarola voadora, ajudando-o na sua construção e participando no seu primeiro voo. Uma vez concluído este projecto, integra o da construção do convento, como um dos muitos trabalhadores que para aí são canalizados.

O convento foi construído à custa de muitos sacrifícios, à custa do suor do povo, que passou por inúmeras dificuldades para levar a cabo este empreendimento. A questão social não ficou de lado neste romance, daí o destaque que o narrador dá à classe dos desprivilegiados, constituída por gente humilde e oprimida. Por tal facto, a classe popular (onde se encaixam também Baltasar e Blimunda) assume-se como um dos dois pólos de personagens que servem de meio para os privilegiados atingirem os seus fins.

Como conclusão, será possível sublinhar que José Saramago (tal como Luís de Sttau Monteiro o fez em Felizmente há luar! - se bem que em situações políticas diferentes) sentiu a necessidade de repensar os acontecimentos e as figuras históricas à luz de uma nova realidade criada num presente e pressentida num futuro em que a história das mentalidades questiona o papel da própria História.

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