Em Memorial do Convento entrelaçam-se três planos narrativos que remetem para a concretização de dois sonhos onde a história e a ficção surgem quase sempre de mãos dadas, interagindo e fazendo prosseguir a narrativa.
Na verdade, o plano narrativo da construção do convento deriva da promessa do rei, que na ânsia de ter descendentes, projecta o sonho megalómano de eternizar o seu nome nessa construção que o tornará eterno. A sua corte poderosa e rica vai permitir a realização do seu sonho que termina em 1730, no dia do seu 41º aniversário, quando ocorre a sagração da Basílica do Convento. Paralelamente a esta narrativa de fundo histórico, constrói-se o plano narrativo da construção da passarola em redor do sonho de voar do padre Bartolomeu, um sonho que a Inquisição persegue por considerá-lo diabólico e herege e que levará o padre à fuga e à morte. Contudo, também este sonho se concretiza, pois a passarola voará, embora estejamos perante um plano ficcional em que apenas o padre é figura histórica.
Surge ainda um 3º plano narrativo - o dos amores de Baltasar e Blimunda - totalmente ficção, mas em que estas duas figuras se entrecruzam sempre com a realidade/verdade histórica. Por um lado, Baltasar e Blimunda colaboram com o padre na construção da máquina voadora e partilham do seu sonho; por outro lado, toda a vida e a relação de Baltasar e Blimunda se estrutura e constrói entre dois autos-de-fé: o 1º em 1711, onde a mãe de Blimunda é uma das condenadas e onde Blimunda conhece Baltasar e, por ordem mental da mãe, se une a ele; o 2º em 1739, 28 anos depois quando, de novo num auto-de-fé, no mesmo lugar (Rossio) ela o encontra depois de 9 anos de busca e recolhe a sua vontade, num gesto de união cósmica perfeita.
Em síntese, pode dizer-se que, sobretudo a história de Baltasar e Blimunda está em constante interacção com a História/Realidade, pois sendo personagens ficcionais surgem entrelaçadas com os seus reais, agindo, sonhando e construindo.
Memorial é uma palavra que remete para algo que se eterniza na memoria dos homens e ficará para sempre gravado, imune ao tempo, às suas leis e às suas marcas, vencendo-o.
Assiste-se então, ao longo da história, ao recrutamento de operários que, muitas vezes à força, são obrigados a ir para o convento trabalhar desumanamente e sujeitos a trabalhos violentos e cruéis, de que o transporte da pedra gigante é exemplo. na verdade, se o rei quis imortalizar-se por esta obra, Saramago preocupa-se mais com o outro lado da História e entregou ao povo a honra e a gloria de serem os grandes heróis sacrificados e entregou-lhes o ceptro e a coroa por terem tido o poder e a capacidade de sofrerem e vencerem todos os obstaculosm mesmo os quase intrasponiveis.
Deste modo, as letras da palavra Mafra evocam e heroizam para sempre esse sacrifício redentor (Mortos, Arrastados, Fundidos, Roubados, Assados), a obra constitui um hino e um cântico de gloria ao povo anónimo pelo que se pode dizer que Memorial do Convento subverte as expectativas do titulo, revelando-se um texto que exalta o sofrimento de um povo vergado à omnipotência de um rei megalómano e poderoso.
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