sábado, 2 de junho de 2012

Memorial do Convento - José Saramago - Relação com Os Lusíadas

Alguns intertextos do Memorial do Convento:

É também ainda a ironia do narrador que o faz exclamar, perante, mais uma vez, as exigências do Rei quanto à data de sagração do convento, «vós me direis qual é mais excelente, se ser do mundo rei, se desta gente» invertendo completamente a mensagem de Os Lusíadas, na Dedicatória, de onde, com ligeira adaptação, este passo foi retirado. É que, se em Os Lusíadas era a grandeza, a coragem e a determinação de um povo que orgulhava e engrandecia o seu rei aqui é justamente a capacidade de obedecer sem limites e a subserviência total que elevam o rei a quem todas as vontades, por mais in­concebíveis que sejam, são imediata e inquestionavelmente satisfeitas.

Referências soltas a episódios de Os Lusíadas também vão surgindo num ou noutro momento da narra­tiva, sobretudo quando se trata de comparar a epopeia da descoberta do caminho marítimo para a Índia com a epopeia da viagem na passarola, também ela de descoberta, rumo à aventura e ao desconhecido.
Assim, toda a descrição da viagem de Lisboa a Mafra mantém estreitas semelhanças com uma viagem marítima, estabelecendo o narrador comparações várias como a que se segue, enumerando episódios da viagem que marcam as dificuldades por que tiveram de passar os navegadores: «é como se finalmente tivessem abandonado o porto e as suas amarras para ir descobrir os caminhos ocultos, por isso se lhes aperta o coração tanto, quem sabe que perigos os esperam, que adamastores, que fogos de santelmo, acaso se levantam do mar, que ao longe se vê, trombas de água que vão sugar os ares e o tomam a dar salgado».

Nova referência ao Adamastor surge já perto do local onde vão aterrar e com o qual estiveram prestes a chocar e a desfazerem-se: «Na frente deles ergue-se um vulto escuro, será o adamastor desta viagem, montes que se erguem redondos da terra, ainda riscados de luz vermelha na cumeada». Mas uma outra referência ao Adamastor também já tinha sido feita no momento em que grandes ventos destroem a Igre­ja de madeira que tinha sido especialmente construída para a cerimónia de sagração da primeira pedra do Convento de Mafra. O narrador afirma que a grande tempestade ocorrida «foi como o sopro gigantesco de Adamastor, se Adamastor soprou, quando lhe dobravam o cabo dos seus e nossos trabalhos». 

Também a descrição da «caça» aos homens para trabalhar nas obras do convento de Mafra segue de muito perto o episodio de Os Lusíadas das despedidas de Belém e da fala do Velho do Restelo. As mulheres, ao verem os homens partir sob o jugo dos quadrilheiros, «vão clamando, qual em cabelo " Ó doce e amado esposo e outra protestando, Ó filho, a quem eu tinha só para refrigério e doce amparo desta cansada já velhice minha». E, face a esta cena, faz-se ouvir a voz da oposição a esta epopeia que era a construção do convento: “Õ glória de mandar, ó vã cobiça, ó rei infame, ó pátria sem justiça”, para sempre silenciada por uma «cacetada na cabeça» de um quadrilheiro, mostrando até que ponto a História é circular e os seus episódios se repetem. 

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