Verbos:
Modos Verbais:
Verbos defectivos – não se encontram em todas as formas verbais; são de conjugação incompleta (banis, demolir, florir, florescer).
Verbos impessoais – encontram-se apenas no infinitivo e na 3ª pessoa do singular (chover, trovejar, etc).
Verbos unipessoais – encontram-se apenas na 3ª pessoa do singular e do plural. (miar, ganir…).
Verbos principais – (podem ser intransitivos; Transitivos – directo, indirecto, directo e indirecto, Transitivo – predicativo).
Verbos auxiliares – auxiliam os verbos principais.
Verbos copuladores – ser, estar, parecer, ficar, continuar, permanecer, pedem o predicativo do sujeito.
Indicativo – Exprime factos, certezas, e verdades intemporais.
Subjuntivo - Exprime uma dúvida, uma possibilidade ou um desejo.
Imperativo - Exprime uma ordem, um pedido ou um conselho.
Conjuntivo – Exprime eventualidade, hipótese, possibilidades, duvida, ordem (com sentido de imperativo), vontade, desejo.
Condicional – Exprime possibilidade perante uma condição.
Infinitivo – Representação vaga.
Advérbios - O advérbio é uma palavra invariável que funciona frequentemente como modificador do grupo verbal ou de frase. Desempenha a função sintáctica de complemento oblíquo ou de predicativo do sujeito (pedido com o verbo copulativo ser, estar, parecer, ficar, continuar, permanecer):
De predicado:
Lugar (locativo) – a baixo, a cima, aí, ali, aqui, cá, dentro, fora, longe, perto, atrás…
Tempo (temporal) – ainda, hoje, ontem, amanha, cedo, tarde, nunca, jamais, logo…
Modo – bem, mal, depressa, devagar, melhor, pior, amavelmente, e muitos outros terminados em -mente.
De frase:
Modo – certamente, efectivamente, (in)felizmente, francamente, possivelmente, provavelmente, talvez.
Conectivo - Assim, contrariamente, consequentemente, contudo, depois, finalmente, nomeadamente, primeiramente, primeiro, segundo…
Negação - Não.
De afirmação - Sim.
De quantidade e grau - Assaz, bastante, bem, demais, demasiado, demasiadamente, mais, menos, muito, pouco, quanto, tanto, tão…
De inclusão -Até, mesmo, também, inclusivamente…
De exclusão - Apenas, exclusivamente, salvo, senão, simplesmente, unicamente, só, somente.
Innterrogação - Onde? Quando? Como? Porque?
Campo lexical - Campo lexical de uma palavra é o conjunto de palavras que se relacionam com elas em termos de sentido (mas não são sinónimos nem palavras da mesma família):
Coração, sentimento, emoção, paixão, dor, agonia, sofrimento.
Campo Semântico - Campo semântico de uma palavra são os vários sentidos que uma mesma palavra pode ter quando inserida em contextos diferentes:
Ele sofre do coração. (órgão do corpo)
Ele é mesmo um coração de pedra. (Sem sentimento)
Não tens coração. (não tem sentimentos)
Quando ele lhe deu a notícia, caiu-lhe o coração aos pés. (ficou desalento/chocado)
Ela falou-lhe com o coração nas mãos. (sinceridade)
Ele não consegue impor-se, é um coração mole. (sensível/sentimental)
Denotação – é a linguagem caracterizada pelo uso de palavras no seu sentido próprio. “Dói-me o coração”.
Conotação – é a linguagem caracterizada pelo uso de palavras no seu sentido figurado ou metafórico. “Não tens coração.”
domingo, 3 de junho de 2012
Modos e Géneros Literários
O essencial sobre o texto narrativo
A, partir daqui, é possível aprender algumas das características essenciais do género dramático, as quais são susceptíveis de conexão distintiva com a narrativa. Deste modo, entender-se-á por drama toda a representação directa de uma acção consumada num tempo relativamente concentrado. O facto de essa representação ser directa implica não só a sua concretização perante um público, mas também a ausência de narrador; por outro lado, o facto de o drama ser sobretudo acção faz com que os acontecimentos sejam apresentados quase sempre de forma muito viva, processando-se os avanços bruscos no tempo com o auxílio de artifícios específicos (por exemplo a mudança de ato ou cenário).
Isto significa que a representação dramática afirma -se como resultado da interacção de recursos de três naturezas: literários, humanos e técnicos. Se voltarmos a atentar na passagem do Frei Luís de Sousa, teremos oportunidade de encontrar vestígios desses elementos. Assim, os recursos literários são constituídos, como se disse, pelo discurso das personagens e, de um modo geral, pela articulação da acção e das figuras que lhe dão vida enquanto componentes de um universo de ficção particular. Por sua vez, os recursos humanos serão sobretudo os autores que dão vida e interpretação à fala das personagens, sem os quais o texto dramático não pode ser activado. Finalmente, aos recursos técnicos correspondem todos os instrumentos que participam directa ou indirectamente na constituição da ilusão dramática: iluminação, guarda-roupa, efeitos sonoros, cenários, etc.
O mundo exterior, as coisas, os seres, a sociedade e os eventos históricos não constituem um domínio alheio ao poeta lírico. No entanto, o acontecimento exterior, quando está presente num texto lírico, tem sempre como função predominante evocar ou contextualizar uma atitude e um estado íntimo, suscitados por tal episódio ou tal circunstância na subjectividade do poeta. O texto lírico não comporta descrições semelhantes às de um texto narrativo; através dos elementos descritivos projectam - se simbolicamente as emoções, os estados íntimos do Eu.
Romance - No romance há uma regra uma acção central relativamente extensa, eventualmente complicada por acções secundárias dela derivadas. As personagens, normalmente em quantidade e complexidade mais elevadas do que nos restantes géneros narrativos, são atravessadas por conflitos íntimos, traumas e obsessões. Género por natureza propenso à representação do real, o romance tem no espaço uma categoria com funções particularmente relevantes: o espaço do romance, pela sua amplidão e pormenor de caracterização, revela potencialidades consideráveis de representação económico-social, em conexão estreita com as personagens que o povoam e com o tempo histórico em que vivem. A este tempo histórico não é estranho, naturalmente, o tempo como fundamental categoria narrativa, com incidências na história e no discurso narrativo do romance (o tempo da historia pode ser objectivamente calculado, mas é reelaborado pelo modo como é representado na narrativa), e com aspectos muito diversificados: enquadramento histórico propriamente dito, implicações psicológicas (tempo filtrado por vivências das personagens), alusões sociais.
O essencial sobre o texto dramático ou texto de teatro
Texto Dramático - A definição da essência do género dramático passa necessariamente pela previa distinção de dois fenómenos específicos: o teatro e a literatura.
Com, efeito nenhuma reflexão sobre o drama pode ignorar que o texto literário é sujeito, em termos de representação teatral, a um tratamento particular, desde logo sugerido pela complexidade técnica e material de que se reveste o local físico em que o drama é representado. Essa complexidade é determinada fundamentalmente pela existência de uma série de recursos extra literários, que vão das luzes às dimensões do palco e que se destinam a veicular o espectáculo teatral até ao publico em expectativa, sujeito ao operar dos recursos mencionados e submetido quase sempre a uma sensação de ilusão dramática. Por isso o drama apresenta-nos normalmente não um, mas dois textos paralelos, como se pode ver numa passagem do início do Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett (didascália introdutória do Ato primeiro e cena I).
Como se verifica, além da fala da personagem e das que lhe seguirão em cena, deparamos com uma espécie de texto segundo, não mencionado pelo discurso dos actores, mas indirectamente presente na representação: referimo-nos às indicações relacionadas com o cenário, com a posição dos personagens e com a entoação por elas assumida (por exemplo, «repetindo maquinalmente…»).
A, partir daqui, é possível aprender algumas das características essenciais do género dramático, as quais são susceptíveis de conexão distintiva com a narrativa. Deste modo, entender-se-á por drama toda a representação directa de uma acção consumada num tempo relativamente concentrado. O facto de essa representação ser directa implica não só a sua concretização perante um público, mas também a ausência de narrador; por outro lado, o facto de o drama ser sobretudo acção faz com que os acontecimentos sejam apresentados quase sempre de forma muito viva, processando-se os avanços bruscos no tempo com o auxílio de artifícios específicos (por exemplo a mudança de ato ou cenário).
Isto significa que a representação dramática afirma -se como resultado da interacção de recursos de três naturezas: literários, humanos e técnicos. Se voltarmos a atentar na passagem do Frei Luís de Sousa, teremos oportunidade de encontrar vestígios desses elementos. Assim, os recursos literários são constituídos, como se disse, pelo discurso das personagens e, de um modo geral, pela articulação da acção e das figuras que lhe dão vida enquanto componentes de um universo de ficção particular. Por sua vez, os recursos humanos serão sobretudo os autores que dão vida e interpretação à fala das personagens, sem os quais o texto dramático não pode ser activado. Finalmente, aos recursos técnicos correspondem todos os instrumentos que participam directa ou indirectamente na constituição da ilusão dramática: iluminação, guarda-roupa, efeitos sonoros, cenários, etc.
O Essencial Sobre o Texto Lírico
A poesia lírica não se enraíza no anseio ou na necessidade de descrever a realidade empírica, física e social, nem no desejo de representar sujeitos independentes do Eu, ou de contar uma acção. A poesia lírica enraíza-se sim, na revelação e no aprofundamento do Eu lírico, tendendo sempre esta manifestação a interrogar e a revelar a identidade do homem e do ser.
O mundo exterior, as coisas, os seres, a sociedade e os eventos históricos não constituem um domínio alheio ao poeta lírico. No entanto, o acontecimento exterior, quando está presente num texto lírico, tem sempre como função predominante evocar ou contextualizar uma atitude e um estado íntimo, suscitados por tal episódio ou tal circunstância na subjectividade do poeta. O texto lírico não comporta descrições semelhantes às de um texto narrativo; através dos elementos descritivos projectam - se simbolicamente as emoções, os estados íntimos do Eu.
Assim, no texto lírico, quer os elementos narrativos, quer os elementos descritivos, revelam a interioridade do Eu.
O texto lírico é alheio ao fluir do tempo - Nos textos líricos, a temporalidade, quando é representada, é como um elemento do mundo interior do Eu, concorrendo para a representação do que é central no universo lírico: uma ideia, uma emoção, uma sensação, etc.
O texto lírico é marcado pela concentração emotiva e expressiva - A grande maioria dos textos líricos tem uma extensão relativamente reduzida.
O texto lírico realiza, de modo singular, a simbiose da língua falada e da língua escrita. Se as características do texto lírico referidas pressupõem a performance oral do poema - mesmo que processada apenas interiormente através de uma leitura silenciosa - os aspectos relativos à forma impressa do texto pressupõem a compreensão e a fruição do poema como texto escrito, como objecto espacial de natureza visual.
O texto lírico é marcado pela concentração emotiva e expressiva - A grande maioria dos textos líricos tem uma extensão relativamente reduzida.
O texto lírico realiza, de modo singular, a simbiose da língua falada e da língua escrita. Se as características do texto lírico referidas pressupõem a performance oral do poema - mesmo que processada apenas interiormente através de uma leitura silenciosa - os aspectos relativos à forma impressa do texto pressupõem a compreensão e a fruição do poema como texto escrito, como objecto espacial de natureza visual.
sábado, 2 de junho de 2012
Memorial do Convento - José Saramago - Plano Narrativo
Em Memorial do Convento entrelaçam-se três planos narrativos que remetem para a concretização de dois sonhos onde a história e a ficção surgem quase sempre de mãos dadas, interagindo e fazendo prosseguir a narrativa.
Na verdade, o plano narrativo da construção do convento deriva da promessa do rei, que na ânsia de ter descendentes, projecta o sonho megalómano de eternizar o seu nome nessa construção que o tornará eterno. A sua corte poderosa e rica vai permitir a realização do seu sonho que termina em 1730, no dia do seu 41º aniversário, quando ocorre a sagração da Basílica do Convento. Paralelamente a esta narrativa de fundo histórico, constrói-se o plano narrativo da construção da passarola em redor do sonho de voar do padre Bartolomeu, um sonho que a Inquisição persegue por considerá-lo diabólico e herege e que levará o padre à fuga e à morte. Contudo, também este sonho se concretiza, pois a passarola voará, embora estejamos perante um plano ficcional em que apenas o padre é figura histórica.
Surge ainda um 3º plano narrativo - o dos amores de Baltasar e Blimunda - totalmente ficção, mas em que estas duas figuras se entrecruzam sempre com a realidade/verdade histórica. Por um lado, Baltasar e Blimunda colaboram com o padre na construção da máquina voadora e partilham do seu sonho; por outro lado, toda a vida e a relação de Baltasar e Blimunda se estrutura e constrói entre dois autos-de-fé: o 1º em 1711, onde a mãe de Blimunda é uma das condenadas e onde Blimunda conhece Baltasar e, por ordem mental da mãe, se une a ele; o 2º em 1739, 28 anos depois quando, de novo num auto-de-fé, no mesmo lugar (Rossio) ela o encontra depois de 9 anos de busca e recolhe a sua vontade, num gesto de união cósmica perfeita.
Em síntese, pode dizer-se que, sobretudo a história de Baltasar e Blimunda está em constante interacção com a História/Realidade, pois sendo personagens ficcionais surgem entrelaçadas com os seus reais, agindo, sonhando e construindo.
Memorial é uma palavra que remete para algo que se eterniza na memoria dos homens e ficará para sempre gravado, imune ao tempo, às suas leis e às suas marcas, vencendo-o.
Assiste-se então, ao longo da história, ao recrutamento de operários que, muitas vezes à força, são obrigados a ir para o convento trabalhar desumanamente e sujeitos a trabalhos violentos e cruéis, de que o transporte da pedra gigante é exemplo. na verdade, se o rei quis imortalizar-se por esta obra, Saramago preocupa-se mais com o outro lado da História e entregou ao povo a honra e a gloria de serem os grandes heróis sacrificados e entregou-lhes o ceptro e a coroa por terem tido o poder e a capacidade de sofrerem e vencerem todos os obstaculosm mesmo os quase intrasponiveis.
Deste modo, as letras da palavra Mafra evocam e heroizam para sempre esse sacrifício redentor (Mortos, Arrastados, Fundidos, Roubados, Assados), a obra constitui um hino e um cântico de gloria ao povo anónimo pelo que se pode dizer que Memorial do Convento subverte as expectativas do titulo, revelando-se um texto que exalta o sofrimento de um povo vergado à omnipotência de um rei megalómano e poderoso.
Memorial do Convento - José Saramago - Relação com Os Lusíadas
É também ainda a ironia do narrador que o faz exclamar, perante, mais uma vez, as exigências do Rei quanto à data de sagração do convento, «vós me direis qual é mais excelente, se ser do mundo rei, se desta gente» invertendo completamente a mensagem de Os Lusíadas, na Dedicatória, de onde, com ligeira adaptação, este passo foi retirado. É que, se em Os Lusíadas era a grandeza, a coragem e a determinação de um povo que orgulhava e engrandecia o seu rei aqui é justamente a capacidade de obedecer sem limites e a subserviência total que elevam o rei a quem todas as vontades, por mais inconcebíveis que sejam, são imediata e inquestionavelmente satisfeitas.
Referências soltas a episódios de Os Lusíadas também vão surgindo num ou noutro momento da narrativa, sobretudo quando se trata de comparar a epopeia da descoberta do caminho marítimo para a Índia com a epopeia da viagem na passarola, também ela de descoberta, rumo à aventura e ao desconhecido.
Assim, toda a descrição da viagem de Lisboa a Mafra mantém estreitas semelhanças com uma viagem marítima, estabelecendo o narrador comparações várias como a que se segue, enumerando episódios da viagem que marcam as dificuldades por que tiveram de passar os navegadores: «é como se finalmente tivessem abandonado o porto e as suas amarras para ir descobrir os caminhos ocultos, por isso se lhes aperta o coração tanto, quem sabe que perigos os esperam, que adamastores, que fogos de santelmo, acaso se levantam do mar, que ao longe se vê, trombas de água que vão sugar os ares e o tomam a dar salgado».
Nova referência ao Adamastor surge já perto do local onde vão aterrar e com o qual estiveram prestes a chocar e a desfazerem-se: «Na frente deles ergue-se um vulto escuro, será o adamastor desta viagem, montes que se erguem redondos da terra, ainda riscados de luz vermelha na cumeada». Mas uma outra referência ao Adamastor também já tinha sido feita no momento em que grandes ventos destroem a Igreja de madeira que tinha sido especialmente construída para a cerimónia de sagração da primeira pedra do Convento de Mafra. O narrador afirma que a grande tempestade ocorrida «foi como o sopro gigantesco de Adamastor, se Adamastor soprou, quando lhe dobravam o cabo dos seus e nossos trabalhos».
Também a descrição da «caça» aos homens para trabalhar nas obras do convento de Mafra segue de muito perto o episodio de Os Lusíadas das despedidas de Belém e da fala do Velho do Restelo. As mulheres, ao verem os homens partir sob o jugo dos quadrilheiros, «vão clamando, qual em cabelo " Ó doce e amado esposo e outra protestando, Ó filho, a quem eu tinha só para refrigério e doce amparo desta cansada já velhice minha». E, face a esta cena, faz-se ouvir a voz da oposição a esta epopeia que era a construção do convento: “Õ glória de mandar, ó vã cobiça, ó rei infame, ó pátria sem justiça”, para sempre silenciada por uma «cacetada na cabeça» de um quadrilheiro, mostrando até que ponto a História é circular e os seus episódios se repetem.
Memorial do Convento - José Saramago - Estilo e Linguagem
O estilo e a linguagem de Saramago
Em Memorial do Convento, Saramago adopta um estilo que contempla rupturas com as normas linguísticas, a convencionalidade do código escrito (principalmente a nível da pontuação, da interpenetração de falas e de discursos e do uso da maiúscula no interior da frase).
Até a descrição de elementos espaciais ou de comportamentos ou atitudes das personagens manifesta uma clara desobediência às regras linguísticas, levando à confusão entre elementos descritivos e narrativos, à mistura de diálogos e outros segmentos frásicos num discurso indirecto "diluído", que mais não é que a reprodução das falas das personagens, à utilização convergente de marcas deícticas referenciadas a momentos distintos (o de um presente localizado no tempo evocado - século XVIII - e o do presente da produção do próprio discurso romanesco - século XX).
Importa destacar a importância da vírgula, que é o sinal gráfico que se sobrepõe a todos os outros, separando as intervenções das personagens e marcando o ritmo e as pausas do texto. Os sinais de pontuação que traduzem as exclamações ou as interrogações estão ausentes do texto, embora estas sejam proferidas pelas personagens (a julgar pelas construções sintácticas de alguns enunciados lidos). Cabe ao leitor demarcar as suas manifestações e descobrir, pela leitura, a sua presença. Estamos perante um discurso novo, "sui generis", incomparável, por vezes directo, por vezes indirecto, por vezes indirecto livre, e também directo livre (com presença de marcas deícticas atrás referidas).
O tom coloquial e as interpelações ao narratário fazem lembrar um estilo semelhante ao usado nos sermões barrocos do século XVIII, o mesmo sucedendo com a rebuscada adjectivação, as extensas estruturas enumerativas, as inversões sintácticas. Rico nos recursos estilísticos, nos pormenores visualistas e sensitivos, explorando mecanismos consentâneos com o discurso barroco que surge representado, recorrendo a expressões e a marcas oralizantes (provérbios e outras expressões de sabedoria popular), o discurso saramaguiano explora uma diversidade de matizes, estrategicamente adoptadas para marcar a irreverência no modo como se olha(m) os factos narrados.
A escrita de Saramago explora efeitos de polifonia, que conjugam uma pluralidade de vozes, de discursos – é, por vezes, complicado destrinçar a pertença das vozes intervenientes, frequentemente interrompidas por comentários do narrador, não poucas vezes irónicos.
Se a frase longa dificulta a leitura e a percepção da informação, aproxima-se do contínuo próprio do discurso oral, repescado para uma escrita que simula um narrador orador que se pronuncia e interage com o narratário.
Até a descrição de elementos espaciais ou de comportamentos ou atitudes das personagens manifesta uma clara desobediência às regras linguísticas, levando à confusão entre elementos descritivos e narrativos, à mistura de diálogos e outros segmentos frásicos num discurso indirecto "diluído", que mais não é que a reprodução das falas das personagens, à utilização convergente de marcas deícticas referenciadas a momentos distintos (o de um presente localizado no tempo evocado - século XVIII - e o do presente da produção do próprio discurso romanesco - século XX).
Importa destacar a importância da vírgula, que é o sinal gráfico que se sobrepõe a todos os outros, separando as intervenções das personagens e marcando o ritmo e as pausas do texto. Os sinais de pontuação que traduzem as exclamações ou as interrogações estão ausentes do texto, embora estas sejam proferidas pelas personagens (a julgar pelas construções sintácticas de alguns enunciados lidos). Cabe ao leitor demarcar as suas manifestações e descobrir, pela leitura, a sua presença. Estamos perante um discurso novo, "sui generis", incomparável, por vezes directo, por vezes indirecto, por vezes indirecto livre, e também directo livre (com presença de marcas deícticas atrás referidas).
O tom coloquial e as interpelações ao narratário fazem lembrar um estilo semelhante ao usado nos sermões barrocos do século XVIII, o mesmo sucedendo com a rebuscada adjectivação, as extensas estruturas enumerativas, as inversões sintácticas. Rico nos recursos estilísticos, nos pormenores visualistas e sensitivos, explorando mecanismos consentâneos com o discurso barroco que surge representado, recorrendo a expressões e a marcas oralizantes (provérbios e outras expressões de sabedoria popular), o discurso saramaguiano explora uma diversidade de matizes, estrategicamente adoptadas para marcar a irreverência no modo como se olha(m) os factos narrados.
Memorial do Convento - José Saramago - Dimensão simbólica
Dimensão simbólica
Começando pelo nome das personagens principais, há a referir que em ambas (Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas) é transmitida uma ideia de união. Complementaridade e perfeição, tanto pela simbologia do número sete como pelo par sol-lua (dia-noite). De acordo com a simbologia dos números, constata-se, também, que ambos os nomes representam perfeição, totalidade e até magia, pelo facto de serem trissílabos (e aqui reside a simbologia do número três).
Vários mutilados surgem na construção do convento ("isto é uma terra de defeituosos. um marreco, um maneta, um zarolho"), onde se inclui obviamente Baltasar. Tal situação poderá levar à interpretação simbólica da luta desmedida na construção de algo, como realização de um sonho. Baltasar, após ter perdido a mão esquerda, empreende outras lutas, na construção da passarola e na colaboração na edificação do convento de Mafra.
Simbolicamente, estas personagens representam perseverança, força e luta.
A riqueza interior de Blimunda apresenta-se, simbolicamente, pela força do seu olhar, possuidor de um poder mágico. O poder do olhar é um tópico tradicional na literatura, seja no tema da sedução seja no do reflexo dos sentimentos (os olhos como janela da alma). Aqui, o tópico do olhar está também ligado a um poder (de Blimunda), aquela que, pela visão, colhe metaforicamente as duas mil vontades necessárias para realizar o sonho do padre Bartolomeu. Trata-se das vontades humanas que, ao longo dos tempos, originaram o progresso do mundo com a invenção de "aparelhos voadores" e de todos os objectos concebidos pelo Homem. Não será por acaso que essas vontades sejam metaforizadas nas nuvens. As nuvens ocupam um lugar ascendente em relação à Terra.
Por estes aspectos, as vontades (nuvens) estão carregadas de um carácter eufórico (positivo), contudo, de difícil, acesso. Só uma personagem como Blimunda conseguiria dominar, penetrar neste mundo não material.
Ainda no que concerne à simbologia dos números, o sete não só aparece associado aos nomes de Baltasar e Blimunda como também à data e à hora da sagração do convento, aos sete anos vividos em Portugal pelo músico Scarlatti, às sete vezes que Blimunda passa por Lisboa à procura de Baltasar, às sete igrejas visitadas na Páscoa, aos sete bispos que baptizaram Maria Xavier Francisca comparados a sete sóis de ouro e prata nos degraus do altar-mor ("Sete bispos a baptizaram, que eram como sete sóis de ouro e prata nos degraus do altar-mor").
O número nove surge também a simbolizar insistência e determinação, quando Blimunda procura o homem amado durante nove anos. Este número encerra também simbolicamente a ideia de procura. Segundo Chevalier e Gheerbrant, o nove "simboliza o coroamento dos esforços, o concluir de uma criação", o que realmente acontece a Blimunda que, após os longos nove anos de busca, reencontra finalmente Baltasar - já não um encontro físico, mas místico e completo ("Naquele extremo arde um homem a quem falta a mão esquerda. (...) E uma nuvem fechada está no centro do seu corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda."). É a sublimação de um amor que se afirmou pela singularidade e naturalidade próprias de quem se diferencia, face a outros amores mais artificiais.
Começando pelo nome das personagens principais, há a referir que em ambas (Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas) é transmitida uma ideia de união. Complementaridade e perfeição, tanto pela simbologia do número sete como pelo par sol-lua (dia-noite). De acordo com a simbologia dos números, constata-se, também, que ambos os nomes representam perfeição, totalidade e até magia, pelo facto de serem trissílabos (e aqui reside a simbologia do número três).
Vários mutilados surgem na construção do convento ("isto é uma terra de defeituosos. um marreco, um maneta, um zarolho"), onde se inclui obviamente Baltasar. Tal situação poderá levar à interpretação simbólica da luta desmedida na construção de algo, como realização de um sonho. Baltasar, após ter perdido a mão esquerda, empreende outras lutas, na construção da passarola e na colaboração na edificação do convento de Mafra.
Simbolicamente, estas personagens representam perseverança, força e luta.
A riqueza interior de Blimunda apresenta-se, simbolicamente, pela força do seu olhar, possuidor de um poder mágico. O poder do olhar é um tópico tradicional na literatura, seja no tema da sedução seja no do reflexo dos sentimentos (os olhos como janela da alma). Aqui, o tópico do olhar está também ligado a um poder (de Blimunda), aquela que, pela visão, colhe metaforicamente as duas mil vontades necessárias para realizar o sonho do padre Bartolomeu. Trata-se das vontades humanas que, ao longo dos tempos, originaram o progresso do mundo com a invenção de "aparelhos voadores" e de todos os objectos concebidos pelo Homem. Não será por acaso que essas vontades sejam metaforizadas nas nuvens. As nuvens ocupam um lugar ascendente em relação à Terra.
Por estes aspectos, as vontades (nuvens) estão carregadas de um carácter eufórico (positivo), contudo, de difícil, acesso. Só uma personagem como Blimunda conseguiria dominar, penetrar neste mundo não material.
Ainda no que concerne à simbologia dos números, o sete não só aparece associado aos nomes de Baltasar e Blimunda como também à data e à hora da sagração do convento, aos sete anos vividos em Portugal pelo músico Scarlatti, às sete vezes que Blimunda passa por Lisboa à procura de Baltasar, às sete igrejas visitadas na Páscoa, aos sete bispos que baptizaram Maria Xavier Francisca comparados a sete sóis de ouro e prata nos degraus do altar-mor ("Sete bispos a baptizaram, que eram como sete sóis de ouro e prata nos degraus do altar-mor").
O número nove surge também a simbolizar insistência e determinação, quando Blimunda procura o homem amado durante nove anos. Este número encerra também simbolicamente a ideia de procura. Segundo Chevalier e Gheerbrant, o nove "simboliza o coroamento dos esforços, o concluir de uma criação", o que realmente acontece a Blimunda que, após os longos nove anos de busca, reencontra finalmente Baltasar - já não um encontro físico, mas místico e completo ("Naquele extremo arde um homem a quem falta a mão esquerda. (...) E uma nuvem fechada está no centro do seu corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda."). É a sublimação de um amor que se afirmou pela singularidade e naturalidade próprias de quem se diferencia, face a outros amores mais artificiais.
Memorial do Convento - José Saramago - Personagens
As personagens e respectivos projectos:
Tal como se apresentam várias linhas de acção narrativas complementares, também nelas desfilam personagens de diferente estatuto e relevo.
Assim, no rol das personagens históricas, destaca-se a figura de D. João V, rei de Portugal, poderoso e rico, contudo insatisfeito por não ter descendente legítimo. Por este motivo, promete "levantar um convento em Mafra" se D. Maria Ana Josefa, sua mulher, lhe der um sucessor. A promessa cumpre-se com o nascimento da princesa Maria Bárbara.
São, contudo, as personagens mais ficcionais aquelas a quem maior destaque confere o autor, por pertencerem àquele grupo de personagens desprivilegiadas.
Baltasar é uma das personagens da obra com maior densidade psicológica. Perdeu a mão esquerda na Guerra da Sucessão contra os Castelhanos, onde lutou como um verdadeiro guerreiro e homem de armas.
O convento foi construído à custa de muitos sacrifícios, à custa do suor do povo, que passou por inúmeras dificuldades para levar a cabo este empreendimento. A questão social não ficou de lado neste romance, daí o destaque que o narrador dá à classe dos desprivilegiados, constituída por gente humilde e oprimida. Por tal facto, a classe popular (onde se encaixam também Baltasar e Blimunda) assume-se como um dos dois pólos de personagens que servem de meio para os privilegiados atingirem os seus fins.
Como conclusão, será possível sublinhar que José Saramago (tal como Luís de Sttau Monteiro o fez em Felizmente há luar! - se bem que em situações políticas diferentes) sentiu a necessidade de repensar os acontecimentos e as figuras históricas à luz de uma nova realidade criada num presente e pressentida num futuro em que a história das mentalidades questiona o papel da própria História.
Na lógica de uma estrutura dual e de conflito de interesses, evidenciam-se dicotomicamente dois tipos de vivência: uma que se serve dos seus semelhantes para atingir determinados objectivos; outra que servirá de meio para alcançar esses mesmos fins. Tal facto está ao serviço da intenção do autor que pretende fazer a análise das condições sociais, morais e económicas da corte e do povo. Entre dominantes e dominados, há um desfilar de personagens a que se juntam outras duas cujos nomes estão carregados de simbologia: Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas.
Assim, no rol das personagens históricas, destaca-se a figura de D. João V, rei de Portugal, poderoso e rico, contudo insatisfeito por não ter descendente legítimo. Por este motivo, promete "levantar um convento em Mafra" se D. Maria Ana Josefa, sua mulher, lhe der um sucessor. A promessa cumpre-se com o nascimento da princesa Maria Bárbara.
A caracterização do rei é feita sempre através da descrição das suas acções e dos seus pensamentos; portanto, prioritariamente é a caracterização indirecta que evidencia traços pouco significantes do monarca.
Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão apresenta-se como uma personagem sonhadora, que tem em mente a construção da passarola. Para tal, contribuiu a ajuda de Baltasar e Blimunda, assim como o apoio do rei D. João V. Trata-se de uma figura com fundamento histórico, na medida em que "reza a História" que Bartolomeu de Gusmão veio do Brasil para Portugal, em 1701, devido ao seu interesse por questões científicas.
Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão apresenta-se como uma personagem sonhadora, que tem em mente a construção da passarola. Para tal, contribuiu a ajuda de Baltasar e Blimunda, assim como o apoio do rei D. João V. Trata-se de uma figura com fundamento histórico, na medida em que "reza a História" que Bartolomeu de Gusmão veio do Brasil para Portugal, em 1701, devido ao seu interesse por questões científicas.
O seu empenho em experiências aerostáticas estará na base da construção da passarola voadora. A perseguição pela Inquisição leva à sua fuga para Espanha (originando, no romance, a mutação do trabalho de construção da passarola, por Blimunda e Baltasar, para a construção do convento de Mafra).
De referencialidade histórica são também os nomes de Ludovice (arquitecto contratado pelo rei para a construção do Palácio e Convento de Mafra) e de Scarlatti (compositor e mestre-de-capela da princesa Maria Bárbara), ambos representantes do cosmopolitismo que marcava a corte portuguesa no século XVIII.
São, contudo, as personagens mais ficcionais aquelas a quem maior destaque confere o autor, por pertencerem àquele grupo de personagens desprivilegiadas.
A figura feminina, Blimunda, dotada de uma estranha capacidade de observar o interior do Homem, é capaz de ver os males, destruidores da vida, o que lhe vale para recolher as vontades necessárias ao voo da passarola do padre Bartolomeu de Gusmão. O seu misticismo, ligado aos seus poderes metafísicos, dá ao inventor Bartolomeu de Gusmão a energia que a Física ainda não havia inventado.
A caracterização desta personagem ora é feita pelo narrador ora por outras personagens. Baltasar, seu companheiro, fica perplexo quando visualiza os olhos de Blimunda, pois "olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento, ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, e às vezes tornam-se negros nocturnos ou brancos brilhantes como lascado carvão de pedra" (p. 55). Aos olhos do narrador, Blimunda, mulher de trabalho, apresenta uma "mão discreta e maltratada, com as unhas sujas de quem veio da horta e andou a sachar antes de apanhar as cerejas" (p. 169).
O nome de Blimunda, estranho e raro tal como a personagem que o veste, teria surgido ao autor talvez pela musicalidade que encerra ("aquele som desgarrador de violoncelo que habita o nome de Blimunda", José Saramago, JL, nº 410 de 15-5-90) ou pela magia das suas três sílabas, símbolo de perfeição e totalidade.
Esta figura representa a força que permite ao povo a sua sobrevivência, assim como contestar o poder e resistir.
Baltasar é uma das personagens da obra com maior densidade psicológica. Perdeu a mão esquerda na Guerra da Sucessão contra os Castelhanos, onde lutou como um verdadeiro guerreiro e homem de armas.
Com Blimunda forma um par amoroso, cuja união mágica, mas pagã, é confirmada pelo padre Bartolomeu de Gusmão. Ironicamente, as forças do poder e da repressão contribuem para o seu conhecimento, no momento em que Sebastiana Maria de Jesus (mãe de Blimunda) se encontrava sob a alçada de um auto-de-fé.
Baltasar partilha também do sonho do padre em construir a passarola voadora, ajudando-o na sua construção e participando no seu primeiro voo. Uma vez concluído este projecto, integra o da construção do convento, como um dos muitos trabalhadores que para aí são canalizados.
O convento foi construído à custa de muitos sacrifícios, à custa do suor do povo, que passou por inúmeras dificuldades para levar a cabo este empreendimento. A questão social não ficou de lado neste romance, daí o destaque que o narrador dá à classe dos desprivilegiados, constituída por gente humilde e oprimida. Por tal facto, a classe popular (onde se encaixam também Baltasar e Blimunda) assume-se como um dos dois pólos de personagens que servem de meio para os privilegiados atingirem os seus fins.
Como conclusão, será possível sublinhar que José Saramago (tal como Luís de Sttau Monteiro o fez em Felizmente há luar! - se bem que em situações políticas diferentes) sentiu a necessidade de repensar os acontecimentos e as figuras históricas à luz de uma nova realidade criada num presente e pressentida num futuro em que a história das mentalidades questiona o papel da própria História.
Memorial do Convento - José Saramago - Visão crítica / Ironia
Visão crítica:
A ironia bem como o distanciamento temporal e afectivo do narrador manifestam-se relativamente ao poder de D. João V ou da Inquisição, obrigando a reler criticamente o passado e a corrigir a visão que dele temos da História.
Na realidade, José Saramago não pretendeu relatar a história do convento, mas a dos sonhos e vontades dos homens que para ele contribuíram e que permitiram criar um espaço de evasão e liberdade. Ao falar da construção do convento, contam-se os problemas do rei e da rainha que originaram a edificação do monumento; recorda-se o trabalho pesado dos trabalhadores que o construíram; denuncia-se a vaidade do rei e os excessos da Igreja, a exploração dos mais pobres, a instauração de um clima de terror, a manutenção do povo na ignorância, as injustiças que se cometem em nome do poder.
Parece ser possível afirmar que a edificação do convento de Mafra constitui uma oportunidade para retratar outros assuntos relacionados com a ideologia e as convicções humanizadoras do autor.
É por isso compreensível a forte crítica social que perpassa sempre que se descrevem as personagens com estatuto social elevado e a simpatia e elogio que se denotam quando o narrador se posiciona positivamente face aos socialmente desfavorecidos. O estado da justiça em Portugal também é amplamente criticado, principalmente porque se castigam os pobres e humildes e se despenalizam os crimes que os privilegiados cometem.
Memorial do Convento - José Saramago - O espaço
O espaço:
O ambiente da época joanina, das primeiras décadas do século XVIII, aparece retratado nos espaços físicos de Lisboa, Mafra e Alentejo, que se constituem como espaços sociais, uma vez que ilustram hábitos, tradições e costumes da época representada na acção.
A preferência do narrador pelos locais onde as camadas populares se movimentam justifica-se pelo objectivo de anotar as desigualdades, a exploração ou a crueldade a que estes estavam sujeitos. E não há melhor local para ilustrar as injustiças sociais que a capital, a qual exemplifica um país onde a minoria tem tudo e a maioria nada tem.
A reconstituição de acontecimentos e de episódios locais obriga a notações espaciais concretas, onde nem a cor local nem a época podem faltar.
Lisboa e Mafra são os espaços físicos mais referenciados, uma vez que é neles que se movimentam as personagens principais. Todavia, há outras localidades que se destacam: terreiro do paço, Rossio, S. Sebastião da Pedreira (onde decorre a construção da passarola), o alto da Vela (local escolhido para edificar o convento), a “Ilha da Madeira” (onde os trabalhadores usados na construção do convento se alojam) e ainda o Alentejo (apresentado como uma região pobre e perigosa para os transeuntes).
O ambiente da época joanina, das primeiras décadas do século XVIII, aparece retratado nos espaços físicos de Lisboa, Mafra e Alentejo, que se constituem como espaços sociais, uma vez que ilustram hábitos, tradições e costumes da época representada na acção.
É importante referir-se que os locais privilegiados são aqueles onde se dão grandes ajuntamentos populares, destacando-se a bênção da primeira pedra do convento de Mafra, a organização da procissão do Corpo de Deus, o cortejo preparativo das bodas dos príncipes portugueses com espanhóis.
A preferência do narrador pelos locais onde as camadas populares se movimentam justifica-se pelo objectivo de anotar as desigualdades, a exploração ou a crueldade a que estes estavam sujeitos. E não há melhor local para ilustrar as injustiças sociais que a capital, a qual exemplifica um país onde a minoria tem tudo e a maioria nada tem.
De resto, impõem-se a procura, a demanda de um espaço de libertação, um pouco à influencia camoniana do “onde pode acolher-se um fraco humano” (Os Lusíadas, X-106), um espaço alternativo capaz de corresponder à força humana feita de vontade, de espírito, de alma que deixa a sua marca na Terra - neste sentido, veja-se o fecho do romance.
Memorial do Convento - José Saramago
O tempo:
As prolepses são também visíveis quando o narrador anuncia o futuro de algumas personagens, como é o caso da morte do sobrinho e a do infante D. Pedro; a morte da mãe de Baltasar; a referencia aos filhos bastardos do rei D. João V, entre muitos outros dados. Se estas prolepses afirmam a omnisciência face à progressão da acção, outras há que servem o narrador distanciando os acontecimentos, na adopção de uma atitude irónica face a estes últimos (destacando-se a chegada de ex-colonos, por volta do 25 de Abril; a referencia aos cravos que serão símbolo da Revolução, quando um dia forem enfiados nos canos das espingardas; a ida à lua, quando se refere às viagens que a passarola podia facilitar; o desaparecimento dos autos-de-fé; a alusão ao cinema e aos aviões).
O distanciamento do narrador em relação à acção narrada é igualmente perceptível nas interpelações directas que faz ao narratário, na criação de um efeito de distanciação, que impede a identificação deste com as figuras da corte (o parodismo, o ridículo são evidentes pela adopção lexical proposta).
O narrador manipula o tempo a seu belo prazer e constata-se que, se há linearidade e respeito pela cronologia na datação dos acontecimentos históricos relatados, as anacronias – principalmente prolepses – também reflectem o afastamento temporal da intriga. O narrador tem consciência da não correspondência entre o tempo da história e o tempo do discurso, e disso dá conta (quando simula a voz de um cicerone que, na actualidade, guia os visitantes ao convento, detectando-se aqui a oposição entre dois tempos diferentes).
As prolepses são também visíveis quando o narrador anuncia o futuro de algumas personagens, como é o caso da morte do sobrinho e a do infante D. Pedro; a morte da mãe de Baltasar; a referencia aos filhos bastardos do rei D. João V, entre muitos outros dados. Se estas prolepses afirmam a omnisciência face à progressão da acção, outras há que servem o narrador distanciando os acontecimentos, na adopção de uma atitude irónica face a estes últimos (destacando-se a chegada de ex-colonos, por volta do 25 de Abril; a referencia aos cravos que serão símbolo da Revolução, quando um dia forem enfiados nos canos das espingardas; a ida à lua, quando se refere às viagens que a passarola podia facilitar; o desaparecimento dos autos-de-fé; a alusão ao cinema e aos aviões).
O distanciamento do narrador em relação à acção narrada é igualmente perceptível nas interpelações directas que faz ao narratário, na criação de um efeito de distanciação, que impede a identificação deste com as figuras da corte (o parodismo, o ridículo são evidentes pela adopção lexical proposta).
Há ainda outros momentos em que o tempo diegético não coincide com o tempo da história, quando o narrador recorre a elipses temporais, como acontece de 1730 (altura em que Baltasar desaparece - véspera da sagração do convento) a 1739, ano em que a acção termina e se dá o reencontro das personagens principais (na altura em que António José da Silva e Baltasar são queimados no auto-de-fé e as duas personagens do casal se reencontram num plano espiritual, místico). O mesmo sucede com o recurso à analepse. Todo um conjunto de referencias que, na cronologia de 1711, quando se dá a promessa real da construção do convento em Mafra; a chegada de Baltasar a Lisboa, com 26 anos; o encontro deste com Blimunda e Baltasar Lourenço); sucessivos recuos permitem dar conta da perda da mão esquerda de Baltasar (“o ano passado”, ou seja, 1710); das primeiras tentativas de voo do balão de Bartolomeu Lourenço (“faz dois anos”, isto é, 1709); do casamento do rei e da rainha (“há mais de dois anos”); da presença de Baltasar na Guerra da Sucessão de Espanha (“quatro anos”, 1707); entre outros.
Memorial do Convento - José Saramago - Narrador e processo narrativo
O narrador e o processo narrativo:
O narrador é quase sempre omnisciente e heterodiegético, mas este estatuto não serve as intenções polifacetadas e criticas do autor; por isso, este vai servir-se de outros processos, descentrando-se, facultando o seu estatuto a outras personagens, assumindo o ponto de vista do outro.
O estatuto do narrador é aparentemente contraditório: por um lado, há tentativa de aproximação à época retratada, ao reconstituir a cor do local e epocal; por outro, dá-se um enorme efeito de distanciação, visível nas inúmeras prolepses e na ironia sarcástica (utilizada para atacar alguns aspectos da História, fundamentalmente os que se ligam às personagens socialmente favorecidas); na adopção da linguagem (permitindo distinguir entre um vocabulário respeitante à época histórica retratada a outro e que se reporta à actual - por exemplo, a actualização de vocabulário é visível quando se descreve a pedra do pórtico da igreja, cujas medidas e pesos são dados primeiro em pés, palmos e arrobas, para depois se falar em metros e quilos). Temporalmente mais afastados estão os momentos em que o narrador simula actuais visitas guiadas ao convento de Mafra.
Tratando-se de uma obra ficcional, esta encontra-se referenciada por um tempo e um espaço narrativos que valem pelo que sugerem e pelo que ultrapassam da contingencialidade histórica. E o anacronismo do discurso do narrador permite-lhe revisitar o passado e recuperar vidas que a História esqueceu.
A atitude narratológica assumida no romance coloca algumas dificuldades de abordagem neste narrador, principalmente porque a instancia narrativa não é una, subdivide-se em outras de menor importância, manipuladas pelo narrador principal.
O narrador é quase sempre omnisciente e heterodiegético, mas este estatuto não serve as intenções polifacetadas e criticas do autor; por isso, este vai servir-se de outros processos, descentrando-se, facultando o seu estatuto a outras personagens, assumindo o ponto de vista do outro.
A omnisciência do narrador é desde o início assumida, visto que ora se apresenta como conhecedor de toda a intriga, ora levando hipóteses ou deixar antever, anunciar partes do que vai acontecer (por exemplo, o anuncio da morte de Álvaro Diogo).
A própria focalização heterodiegética é relativizada, porque há momentos em que a sua exteriorização face ao narrado se dilui, passando a identificar-se com as características dos participantes na história (como se comprova com a utilização da primeira pessoa do plural) - esta estratégia de aparente participação na intriga é abandonada quando acaba o relato da batalha, próximo de Jerez de los Caballeros.
O estatuto do narrador é aparentemente contraditório: por um lado, há tentativa de aproximação à época retratada, ao reconstituir a cor do local e epocal; por outro, dá-se um enorme efeito de distanciação, visível nas inúmeras prolepses e na ironia sarcástica (utilizada para atacar alguns aspectos da História, fundamentalmente os que se ligam às personagens socialmente favorecidas); na adopção da linguagem (permitindo distinguir entre um vocabulário respeitante à época histórica retratada a outro e que se reporta à actual - por exemplo, a actualização de vocabulário é visível quando se descreve a pedra do pórtico da igreja, cujas medidas e pesos são dados primeiro em pés, palmos e arrobas, para depois se falar em metros e quilos). Temporalmente mais afastados estão os momentos em que o narrador simula actuais visitas guiadas ao convento de Mafra.
O estatuto de narrador omnisciente e heterodiegético progride na complexidade de tratamento, visível com o aparecimento de subnarradores e outras focalizações.
Memorial do Convento - José Saramago - Acção de cada capítulo
Acção:
Pela análise das sequências narrativas da obra verifica-se a existência de uma articulação entre a História e a ficção, uma vez que a construção da passarola, evento que a História se refere, acaba por ser ficcionada quando se afirma que se moverá pela força das “vontades” que Blimunda recolhe.
Para melhor se compreender o modo como o plano da ficção se conecta com o plano da História, é pertinente enumerar as sequências narrativas que constituem a obra (constituída por 25 divisões, as quais estão separadas graficamente e que, por uma questão de clareza, aqui se designam por capítulos):
O 1º capítulo abre com a caricatura da relação entre o rei e a rainha e a promessa da construção de um convento em Mafra.
No 2º acontece o milagre que leva à edificação do convento e refere-se o envolvimento dos franciscanos no mesmo.
O 3º destaca a oposição entre ricos e pobres, fazendo-se um apelo à justiça, porque “o sol quando brilha é de todos”.
No 4º capítulo, relata-se a viagem de Baltasar Sete-Sóis, a perda da mão na guerra (Jerez de los Caballeros - Espanha) e a sua travessia pelo Alentejo até chegar a Lisboa.
No 5º descreve-se o auto-de-fé no qual a mãe de Blimunda é condenada ao degredo e narra-se o encontro entre Baltasar, Blimunda e o padre Bartolomeu Lourenço, que acaba por casar o par amoroso.
O 6º capítulo reporta-se ao encontro entre Baltasar e o padre, em S.Sebastião da Pedreira, agora com o intuito de este convidar o primeiro para construir a passarola.
O 7º refere o nascimento e o baptizado da filha de D. João V e D. Ana Maria (a infanta D. Maria Bárbara), reiterando-se a promessa do rei relativamente à construção do convento.
No 8º, assiste-se à revelação que Blimunda faz a Baltasar sobre os seus poderes e ao jogo sádico de D. Francisco, irmão do rei, cujo entretenimento passa por alvejar os marinheiros que se encontram nos barcos ancorados no Tejo. Há ainda dados sobre o nascimento do segundo filho do rei (D. Pedro) e a escolha do local para edificar o convento (alto da vela, em Mafra).
O 9º capítulo foca os trabalhos de Baltasar (Sete-Sóis) e de Blimunda (Sete-Luas) na construção da passarola, assim como a partida de Bartolomeu Lourenço para a Holanda, onde vai procurar, junto dos alquimistas, meios para fazer voar a máquina. Apresenta-se ainda a descrição da tourada no Terreiro do Paço e a partida de Blimunda e do companheiro para Mafra.
No 10º, dá-se o contacto de Blimunda com a família de Baltasar e fica-se a saber que vários agricultores da região foram expropriados e obrigados a vender as suas terras na Vela por causa do Convento. Foca-se a diferença entre os funerais do príncipe D. Pedro e o do sobrinho de Baltasar; refere-se o nascimento do príncipe D. José (futuro rei de Portugal), a religiosidade da rainha, a doença do rei e a sedução da rainha por parte do cunhado, D. Francisco.
No 11º capítulo, verifica-se o regresso, após três anos, do padre Bartolomeu. Este procura Blimunda e Baltasar para lhes revelar o segredo que fará voar a passarola (o éter, que esta presente na vontade dos vivos), dando-se conta, também, dos primeiros trabalhos da construção do convento.
O 12º capítulo retrata o lançamento da primeira pedra para a construção do convento e os festejos que isso envolveu; a partida de Baltasar e Blimunda para Lisboa para recomeçarem a trabalhar na passarola.
O 13º reporta-se fundamentalmente à procissão do Corpo de Deus (8 de Junho de 1719).
No 14º capítulo, dá-se conta das lições de música da infanta Maria Barbara pelo professor Domenico Scarlatti, que toma conhecimento do projecto da passarola e inicia as suas visitas à Quinta de S.Sebastião da Pedreira.
No 15º refere-se à epidemia de cólera e febre amarela, a recolha das “vontades” por Blimunda e a sua doença (cuja cura se deveu à musica de Scarlatti), e noticia-se a conclusão da maquina de voar.
No 16º capítulo, retratam-se os medos do padre Bartolomeu Lourenço em relação à Inquisição; apesar disso, concretiza o seu sonho passados uns meses: narra-se a passagem do “pássaro” voador sobre as obras do convento, a descida em Monte Junto , a preocupação do padre e a sua tentativa de suicídio, o incêndio da maquina voadora, o desaparecimento do padre e o regresso de Blimunda e Baltasar a Mafra.
No 17º relatam-se os trabalhos de construção do convento, onde Baltasar começa a trabalhar, e a jornada que este faz a Monte Junto para ver a passarola; a visita de Scarlatti ao casal para o informar da morte de Bartolomeu Lourenço, em Toledo, num dia de um terramoto ocorrido em Lisboa.
O 18º capítulo focaliza os gastos reais. Alguns trabalhadores narram, em Mafra, as suas histórias de vida, agora que estão longe das suas terras.
No 19º Baltasar é promovido a boeiro, e nessa condição foi a Pêro Pinheiro para trazer, até Mafra, uma enorme pedra; no percurso foi esmagado um dos trabalhadores – Francisco Marques.
No capítulo 20 acompanha-se a viagem de Baltasar e Blimunda a Monte Junto, com o intuito de reparar os da máquina voadora; relata-se a miséria e o ambiente vividos em Mafra, bem como a morte do pai de Baltasar (Francisco Sete-Sóis).
O capítulo 21 relata o passatempo do rei na construção de uma miniatura da basílica de S. Pedro de Roma. Relaciona-se esta ambição com a decisão de aumentar o convento de Mafra, como forma de compensar a frustração real por não construir a réplica da basílica de S. Pedro em Lisboa; fala-se do recrutamento de homens por todo o país para trabalharem no convento, em virtude do rei ter decidido inaugura-lo no dia do seu aniversário - 22 de Outubro de 1730.
No 22º, assiste-se ao casamento da infanta D. Maria Barbara com D. Fernando VI de Espanha e de D. José com D. Mariana Vitória, à viagem da família real para Espanha (durante a qual se cruza com trabalhadores, que despertam a compaixão da princesa; esta acaba por sair do país sem conhecer o convento que fora mandado edificar pelo seu nascimento).
No 23º surgem os preparativos da sagração do convento, com o cortejo das estátuas dos santos, a partida de Baltasar para Monte Junto e o seu desaparecimento com a passarola.
No 24º, destaca-se a partida de Blimunda em busca de Baltasar e a sagração do convento.
No 25º e ultimo capítulo, dá-se conta da peregrinação que Blimunda encetou, durante nove anos, na procura de Baltasar, até o encontrar num auto-de-fé e libertar a “vontade” dele, no momento em que este está a ser queimado, junto de António José da Silva que aí também perdeu a vida.
Pelo que se expôs anteriormente, não restam dúvidas de que a acção se polariza em torno de dois temas: a construção do convento de Mafra e da passarola, por um lado; o amor de Baltasar e Blimunda, por outro.
Do primeiro, refaz-se a visão da História e constata-se a afirmação do maravilhoso; do segundo, alimenta-se um mundo alternativo, que não se quer dominado pela injustiça, pelo obscurantismo e pela prepotência que domina a visão politica retratada no século XVIII.
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